Degustação
Miguel Torres foi o primeiro produtor internacional de vinhos a identificar e apostar no potencial vitivinícola do Chile. Não só reconheceu esse “paraíso vitivinícola” como foi determinante para que essa visão se tornasse realidade.
Em 1979, os Torres compraram um vinhedo de 100 hectares na então distante Curicó (cerca de 200 km ao sul de Santiago). Longe da capital, mas ao lado da linha férrea, em um pensamento estratégico que já havia se mostrado vencedor na Espanha. A proximidade com o trem pode ter sido pensada para garantir o escoamento da produção – que hoje se dá pela carretera –, mas, além de levar os vinhos da Torres para o mundo, a estrutura logística passou a trazer visitantes do mundo todo para conhecer a vinícola e deliciar-se no fabuloso Restaurante de Vinos, conduzido pelo chef Gabriel Ramos.
O restaurante utiliza-se de produtos com cultivo orgânico e Fair Trade. Aliás, sustentabilidade, família e responsabilidade social são motivo de orgulho para todos, tanto quanto os vinhos, e estão cimentados na cultura dos Torres. Os vinhedos do grupo no Chile estão sob cultivo orgânico, ao mesmo tempo que colaboradores e produtores terceirizados participam do Fair Trade.
Selo Fair Trade
Para quem ainda não conhece, o selo Fair Trade garante, por exemplo, que uvas de produtores terceirizados sejam compradas por um valor normalmente acima do preço de mercado, assegurando que os pequenos produtores consigam uma remuneração honrada e justa por seu trabalho. Dentro do quadro de colaboradores, parte da receita da empresa é destinada a projetos de melhorias da qualidade de vida dos trabalhadores. Os projetos que receberão esses recursos são apresentados e escolhidos em assembleia de trabalhadores. Alguns dos projetos foram hortas e estufas para o cultivo de vegetais orgânicos, que são consumidos pelos trabalhadores e até vendidos para complementação de renda.
Tivemos a oportunidade de ver diversas dessas hortas nas propriedades que visitamos. Campos de futebol nas vilas onde vivem os trabalhadores e até uma ponte sobre um rio foi construída para servir um desses vilarejos. O envolvimento de Miguel Torres Junior foi fundamental para que tais iniciativas fossem implementadas no Chile. Podemos dizer que foi ali que ele se preparou e passou com louvor no teste para assumir a presidência global da Torres, um grupo que cultiva uvas há 300 anos e produz vinhos há 150 anos.
Vinho de iniciados
Nesse contexto temporal, fomos ao Chile para fazer uma degustação vertical com um de seus ícones, que, em 2016, completa 30 anos. Dentro da tradição dos grandes Cabernet Sauvignon do Chile, o Manso de Velasco é um tesouro conhecido no Brasil apenas pelos iniciados. Isso se dá por diversas razões. O vinhedo do Manso está localizado em Curicó, fora do que se convencionou como o terroir dos grandes Cabernets, em Maipo. Mas devido a esse fato, apresenta uma personalidade muito própria. Além disso, trata-se de um single vineyard de baixa produção. Em 1984, os 10 hectares do Fundo San Francisco Norte foram adquiridos pela Torres. E dentro desse “fundo” se encontram 3,6 hectares de vinhedos com mais de 115 anos. Caminhar por seus solos de origem vulcânica e arenosos é como andar pelos corredores de uma catedral. Impossível não se emocionar e querer tocar aquelas videiras com troncos retorcidos, que aparentam ser, ao mesmo tempo, imponentes e frágeis. São plantas que testemunharam outros tempos, quando o homem ainda aprendia a voar e a arte moderna nascia, e que carregam a sabedoria e o equilíbrio que só a experiência pode trazer.
Embora o Sr. Miguel Torres, como bom espanhol, prefira o termo “Pago”, vamos usar microterroir para definir esse fantástico pedacinho de terra que produziu o primeiro Manso de Velasco em 1986. Aliás, o nome do vinho é parte do orgulho das raízes espanholas da Torres ao homenagear o fundador de Curicó, o espanhol José Antonio Manso de Velasco y Sánchez de Samaiego. Este soldado e político, que serviu como governador do Chile e vice-rei do Peru, realizou feitos memoráveis, construindo o primeiro mercado público em Santigo e os canais de irrigação do rio Maipo, reconstruindo Valdivia (destruída por um terremoto) e celebrando o armistício com os índios Mapuche. Do Chile, Manso de Velasco foi para o Peru onde, como vice-rei, enfrentou os efeitos do devastador terremoto de 28 de outubro de 1746. Esse tremor atingiu severamente a cidade de Lima, mas a devastação foi completa em Callao. Durante a noite, um tsunami de 17 metros invadiu a costa por 5 quilômetros, deixando apenas 200 sobreviventes entre seus 5.000 habitantes. A ação de Manso de Velasco foi determinante para socorrer os desabrigados e para os esforços de reconstrução com novas técnicas mais flexíveis e adequadas para resistir a abalos sísmicos do que as construções de adobe. A ação lhe rendeu o título de primeiro Conde de Superunda (ou superonda), que também batiza outro dos ícones da Torres Chile. Nesse caso, um corte de Tempranillo, Cabernet Sauvignon, Monastrell e Carménère.
Um segredo
Em abril de 2011, o Manso de Velasco 2007 mostrou sua força durante uma degustação às cegas em ADEGA. Degustado ao lado de outros 19 ícones chilenos, sagrou-se o terceiro melhor vinho do painel, com 94 pontos. Patricio Tapia elegeu o vinho da safra 2006 como o melhor Cabernet Sauvignon e melhor tinto do Chile, com 95 pontos. Ele é um daqueles rótulos para levar na degustação da confraria e matar os vinhos dos amigos ao custar bem menos do que vale. Todas as vezes que o degustamos, saímos da mesa nos perguntando como é que os brasileiros ainda não o descobriram. Talvez seja porque menos de 500 garrafas por ano sejam destinadas a nosso país. Por tudo isso, planejamos essa viagem ao Chile para uma degustação vertical com o apaixonado e competente enólogo Jorge Rojas Días.
Días é entusiasmado por seu trabalho e seus vinhos, detalhista, competente e comunicativo, sabe falar e gosta de ouvir. Para nossa degustação, ele elegeu as safras 1997, 2003, 2007, 2009, 2010 e 2012 e nos apresentou um estudo profundo de cada uma das safras e vinificações.
A degustação vertical
AD 93 pontos
MANSO DE VELASCO 2012
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum R$ 347). O nariz é tradicional, com aromas florais e um toque mineral. A textura é incrível, taninos granulosos, presentes, e que devem evoluir lindamente por mais 10 anos. Muita fruta vermelha, vibrante, e com rica acidez. Esta riqueza de fruta vem da safra marcada pela alta temperatura e escassez hídrica. Foi colhido entre 22 e 30 de abril, e 70% do vinho estagiou em barricas de carvalho francês Nevers durante 18 meses. Não filtrado e trabalhado com estabilização natural, foi engarrafado em junho de 2014. Com o tempo em taça, abre e revela ainda mais complexidade, com um ligeiro aroma a bacon e um leve mentol na medida exata. Um belo exemplar para marcar os 30 anos de Manso. CB
AD 91 pontos
MANSO DE VELASCO 2010
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum – não disponível). Já percebemos sua concentração quando é vertido na taça. Filho do ano do terremoto, em 27 de fevereiro. Jorge teve duas semanas para identificar as cubas que não tinham sido danificadas para fazer a colheita. Fruto de uma safra com geada em setembro e primavera úmida e mais fria. Tem nariz muito distinto, com caixa de charuto, num perfil clássico e fresco. Em boca, os taninos estão presentes e a fruta vermelha confirma o frescor. Passou dois meses a mais do que o 2012 em barrica. Complexo. Os taninos menos domados ainda estão encobrindo a fruta elegante. CB
AD 94 pontos
MANSO DE VELASCO 2009
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum – não disponível). Grande! Equilíbrio e força andam juntos neste vinho. Nesta safra mais quente, foi sendo colhido em pequenos lotes da primeira à última semana de abril. Aromas de frutas vermelhas e capim cortado. O cassis também está aqui. Taninos excelentes, ainda mais finos do que os do 2012. Elegante, ameixa e cereja e um delicioso final balsâmico. Ph mais baixo, 3,5. Ao fim, também desenvolve a caixa de charuto. Delicioso hoje e por mais uma década. CB
AD 92 pontos
MANSO DE VELASCO 2007
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum – não disponível). Em 2007, com maturação mais lenta, a colheita se realizou em maio. Um exemplar fresco, com taninos muito bons e certa salinidade. No nariz, apresenta canfora e cereja. Em boca, um suco de blueberry. Muito equilibrado e ótimo para abrir agora. CB
AD 93 pontos
MANSO DE VELASCO 2003
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum – não disponível). Inicialmente, mostrou-se mais reduzido, a exemplo do 2009. Apresenta um aroma terciário de celeiro. Fruta muito vibrante e acidez muito boa. Taninos de ótima textura. Muito equilíbrio num vinho mais potente. A colheita foi marcada por um inverno chuvoso em 2002 e que deixou o solo com a água necessária em 2003, que também contou com primavera fria. Vai abrindo em taça e liberando aromas de lavanda e ameixa. A cor já mostra evolução, mas, em boca, nunca diria que já tem 13 anos. O fim de boca tem um delicioso balsâmico. Os taninos e fruta ainda prometem mais 10 anos de boa evolução. CB
AD 89 pontos
MANSO DE VELASCO 1997
Miguel Torres Chile, Curicó, Chile (Devinum – não disponível). Aqui, o aroma já mostra sua evolução terciária, em que prevalece o couro. A acidez é realmente vibrante com uma boca de branco. Cereja no pé e morango frescos. Muito gastronômico. Apesar de já ter passado por seu melhor momento, foi um privilégio degustá-lo. CB
Conclusões gerais
É comum estarmos acostumados a chegar a uma degustação às cegas prontos para preferir os vinhos mais antigos da prova. Isso se deve a um misto de acreditar na capacidade do tempo em ressaltar complexidade e alia-se a certa reverência natural pelas garrafas antigas e raras. Ultimamente, sobretudo quando falamos de Novo Mundo, isso tem caído por terra. E foi isso o que aconteceu na bela casa de hóspedes da Miguel Torres no Chile. Apesar de adorar vinhos antigos, as características de cada safra falaram mais alto do que o tempo de evolução. Mas, acima de tudo, trata-se da evolução da visão de vinho de enólogos inquietos, curiosos e técnicos como Jorge Días, por exemplo. Uma visão que vem dando saltos quânticos para novas dimensões de qualidade. Percebemos isso claramente ao degustar as safras de 2012 e 2009, quando estilo, conhecimento e clima andaram de mãos dadas para produzir vinhos excepcionais.