Enoturismo
Apesar de reconhecer o valor do vinho francês, muita gente evita se arriscar na hora de escolher um. É muito mais fácil optar por um chileno, argentino, português, espanhol ou brasileiro - que dizem claramente em seus rótulos as cepas que os compõem e possuem classificações de compreensão mais simples - do que por um francês, cuja língua já não é tão familiar e "esconde" em suas "appellation" o que há dentro da garrafa. Sendo assim, para acertar num vinho da França, especialmente de Bordeaux e Borgonha, é preciso algum estudo antes. No caso da Borgonha, é recomendável uma indicação confiável e mais do que apenas "algum estudo".
A Borgonha e seus vinhedos são cercadas de mitos que só se revelam completamente quando visitados in loco. Usualmente as regiões vitivinícolas foram se formatando em padrões inspirados em Bordeaux. Aqui não falamos de vinhos, mas de organização, em que os padrões de classificação organizam-se por produtor. Diferente do que aconteceu na Borgonha, onde a classificação se deu por localização do vinhedo.
Podemos derivar o conceito da classificação para a forma como os vinhos e seus preços são organizados, assumindo que o preço é um bom indicativo de qualidade, ao refletir a disposição dos consumidores de pagar por qualquer produto. Isso funciona bem na Borgonha, onde cada uma das apelações acaba mantendo, com o tempo, uma comparabilidade de preço com as demais, e, dentro de cada apelação também comportam-se assim os níveis (do mais alto para o mais baixo em prestígio e preço): Grand Cru, Premier Cru, Village e o Borgonha "genérico". Essa é a coisa mais simples de severificar numa viagem à região. Uma aproximação grosseira para tentar ordenar as coisas permite olhar para as encostas dos morros e compreender que na parte de cima estão (se estiverem) os Grand Crus, seguidos logo pelos Premier Crus, com os Village próximos à estrada e com os AC Borgonha abaixo da estrada (na maioria dos casos).
O poder do terroir
Mas a sensação de uma ordem simples acaba aí, e a racionalidade começa a ser testada pela fragmentação. Todos sabemos que os vinhedos na Borgonha, seguindo o código napoleônico de transmissão de heranças, foram se diluindo entre os sucessores, tornando-se incompreensivelmente fragmentados ao longo dos anos. Além disto, é posta à prova o modelo com que estamos acostumados, em que um vitivinicultor tem sua cantina dentro de seu vinhedo. Primeiro porque os produtores produzem vinhos sob grande número de apelações - e portanto de vinhedos que se encontram em localidades diferentes. Aqui, por serem muito pequenos, o termo vinhedo se confundiria com o termo parcela em qualquer outro lugar do mundo.
Em uma aproximação grosseira para tentar ordenar as coisas diríamos que os Grand Crus estão na parte de cima dos morros, seguidos pelos Premier Cru, depois pelos Village. Mas a sensação de haver ordem acaba aí
Depois porque os vinhedos ficam em volta das cidades (minúsculas, com exceção de Beaune, com 20 mil habitantes), e as cantinas dentro das cidades. A vantagem é que em cada vinhateiro podemos degustar um grande número de apelações e vinhedos diferentes, e constatar, com a perplexidade, que uma uva, a Pinot Noir, vinificada praticamente da mesma maneira, mas degustada em 20 barricas, gera 20 vinhos singularmente diferentes. Isso que é terroir.
100 anos
Os vinhedos permanecem fragmentados, pois seu preço é muito alto, um mal investimento financeiro para quase todo mundo, a não ser cidadãos do leste europeu, que estão comprando avidamente propriedades na região. E, sendo tão valiosas, poderíamos imaginar que as propriedades sempre estão muito bem cercadas e guardadas. Mas não é nada disso. Quando muito, há um pequeno muro de pedras, sem portão, que separa o vinhedo da estrada por onde todos podem transitar. Um local absolutamente seguro? Não, como comprova a recente ameaça aos vinhedos do Romanée-Conti. Um chantagista ameaçava envenenar as vinhas caso não recebe um resgate polpudo. Felizmente, o criminoso foi identificado e está preso como um exemplo para desencorajar os malfeitores de plantão.
Depois de muito refletir, a Borgonha poderia ser comparada a um quebra-cabeças de mil peças, um mosaico de vinhedos, pessoas e vinhos maravilhosos que, como o ditado popular regional prega, precisa de 100 anos de estudo para ser realmente conhecida.
O valor das terras é altíssimo, mas há pouca segurança em torno dos vinhedos, tanto que Romanée- Conti sofreu ameaça recente
O VALOR DAS PESSOAS
A Borgonha merece ser tratada com respeito e estudo e ter bons mentores em uma primeira viagem a região é fundamental. Felizmente pudemos contar com excelentes tutores, como Celso La Pastina, Jacques Trefois, Benoit Bruot e Alberic Bichot, entre outros.
Vinhos espetaculares e bem garimpados ajudam na reflexão sobre a região. Porém, a verdadeira riqueza e diversidade da Borgonha estão nas pessoas, vinhateiros e suas famílias que preservam uma íntima relação com seus vinhedos (próprios ou arrendados - poderíamos dizer adotados) e vinhos. Como o prazer de compartilhar da festiva recepção familiar dos Valette que, ao final de um dia trabalhando no campo, nos recebe para degustar seus grandes e evoluídos brancos, como o belíssimo Macon-Chaintre 2006; tudo acompanhado de finas iguarias na simples e aconchegante casa de pedra onde vivem. As unhas sujas de terra disfarçam o refinamento gastronômico de pessoas acostumadas aos melhores restaurantes do mundo, e que dedicam sua vida a seus vinhos, a viajar e comprar mais vinhedos. Na mesma linha, mas com o toque de modernidade de uma bela cozinha e um Hummer na garagem, encontramos o divertidíssimo Fred Cossard que, em sua casa, recebe e deixa todos à vontade como poucos, enquanto degustamos o Puligny-Montrachet Les Reuchaux 2008, um vinho natural inebriante e que enriquece qualquer reunião de amigos.
Passado e futuro se encontram ao visitar a surpreendente cave do século XI da família Dugat-Py (quase duas vezes mais antiga que o Brasil) e que, se por si só não fosse motivo para voltar à Borgonha, converte-se numa conversa à volta da mesa na casa da família acima da cave, e que culminou com a honra de abrirmos uma garrafa do fenomenal Gevrey- Chambertin Coeur de Roy 1963, cuja cor pálida parece ir escurecendo no copo diante de nossos olhos, com aroma floral de laranja e mel, e toque de garapa na boca sobreposto por frutas cristalizadas, excelente acidez e longuíssimo. Um revelação para se perguntar: como uma uva elegante como a Pinot Noir pode originar um vinho tão longevo e cheio de vida? Aí compreende-se por que Bernard Dugat-Py, tão humilde e sorridente, é um verdadeiro pop star no mundo do vinho.
Em seguida, nada como um jantar com a família de Marcel Lapierre e de Phillipe Pacalet que, com sua esposa brasileira, Mônica, vem desenvolvendo um português bastante eficiente. Interessante degustar tanto a uva Gamay do surpreendente Morgon 2006 de Lapierre e o Gevrey-Chambertin 2008 de Pacalet - cheio de personalidade e cujo o aroma é um verdadeiro passeio no campo, com toques florais que permitem, em qualquer momento, identificar uma obra desse produtor de vinhos naturais.
"Explorar" a Borgonha significa conhecer seus terroirs, caves e vinhos como os de Phillipe Pacalet e, seu tio, Marcel Lapierre.
Uma dica para provar a alta gastronomia borgonhesa é visitar o espetacular restaurante Loiseau. Melhor ainda se estiver acompanhado por um dos bastiões da comunidade local, Alberic Bichot, que, apesar da tradição de sua família e do peso de seus vinhedos, tem um famoso senso de humor que harmoniza impecavelmente com belos pratos e com seus deliciosos vinhos.
Tradição e renovação também caminham de mãos dadas nos vinhos da Henri de Villamont, uma vinícola que agora revive seus anos de ouro reestruturada para a qualidade, como comprova seu Chambolle-Musigny Les Feusselotes, que usualmente recebe metáforas relacionadas a figuras femininas, poderia ser melhor comparado à personalidade e elegância de James Bond.