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A história do Liber Pater

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Como o Liber Pater se tornou o vinho mais caro de Bordeaux em menos de 10 anos de existência

Na Roma antiga, havia o culto a Liber Pater (“pai livre”), considerado o deus da viticultura, fertilidade e liberdade. Além de liberdade, o termo Liber também remete à libação, ao ritual de oferecer uma bebida e beber por prazer. Então ele era exaltado nas festas, na época da colheita e durante os discursos libertários da República Romana.

Segundo a lenda, Liber Pater foi quem mandou o pastor Estáfilo, filho do deus Dionísio, enviar as uvas para o rei, chamado Oinos, e também teria ensinado o monarca a extrair o sumo e, dessa forma, criar a bebida à qual ele deu seu nome (oinos, em grego, significa vinho) e, às videiras, o nome do pastor (staphyle, significa uva).

E foi a alegoria desse mito que o controverso produtor Loïc Pasquet usou para dar vazão às suas ideias. Seu principal mote era, e ainda é, “os vinhos pré-filoxera eram melhores do que os pós-filoxera”. Afirmar isso é uma coisa, mas como provar? Em 2005, ele adquiriu sete hectares de vinhedos na região de Graves para criar o seu “Liber Pater”. No ano seguinte, já estava produzindo algumas garrafas. Hoje, cada uma delas vale mais de US$ 4.000 e são vendidas exclusivamente para uma lista de compradores cadastrados no site da empresa.

Loïc Pasquet quis recriar vinhos com castas e técnicas esquecidas

FENÔMENO DAS UVAS NATIVAS

É difícil explicar o fenômeno Liber Pater a não ser pela excentricidade, mas, polêmicas de lado, críticos e consumidores garantem que Pasquet realmente provou sua teoria e seus vinhos são completamente diferentes de qualquer Bordeaux convencional. Como um ex-engenheiro da Peugeot chegou a isso?

Em sua propriedade no sul de Graves, a 80 metros acima do nível do mar, ele plantou variedades nativas da região em pé-franco, ou seja, não usando os porta-enxertos americanos que “salvaram” a região da filoxera em meados do século XIX. Até aí, não parece nada demais, pois outros produtores também têm plantado em pé-franco. No caso de Pasquet, contudo, ele não se contentou com as “nativas” Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc, mas foi muito além.

Dessa forma, cultivou castas esquecidas como Castet, Mancin, Lauzet, Camaralet, Prunelard, Tarney Coulant e Marselan, por exemplo. Ao todo, plantou 14 variedades raras ao lado das mais famosas Cabernet Sauvignon e Merlot, cujos vinhedos têm mais de 40 anos de idade, além de Sémillon, com 80 anos.

Além das variedades esdrúxulas, Pasquet também resolveu cultivá-las com alta densidade, de 20 mil plantas por hectare, sendo que o convencional na região é algo em torno de 5 mil. Apesar disso, seu rendimento é absurdamente baixo, com apenas duas toneladas por hectare, o que dá 200 caixas de vinho por ano. Pasquet contratou o talentoso e requisitado artista Gérard Puvis para projetar o rótulo. Todos os anos, ele cria um desenho diferente que segue junto ao mote “O vinho dos deuses. O Deus do vinho”.

Os vinhos só passaram a contar com essas variedades raras a partir da safra 2015. E obviamente que tudo isso vai contra as regras da denominação apontadas pelo “Institut national de l’origine et de la qualité”(INAO), portanto, o Liber Pater passou a ser vendido como um mero “Vin de Pays”. Isso, todavia, não impediu que ele alcançasse preços estratosféricos.

Representação de Liber Pater, deus da viticultura, fertilidade e liberdade

VOLTA ÀS ORIGENS, SEM MERLOT

“Os meus vinhos são exatamente como um vinho de Graves na época da Classificação de Bordeaux de 1855”, garante Pasquet, que se apoia na história da região para sustentar suas ideias. Segundo ele, a margem esquerda de Bordeaux está plantada de forma totalmente errada hoje em dia.

“Não deveria haver Merlot, nem enxertos, nem Sauvignon Blanc na margem esquerda. Antes da filoxera, 70% dos vinhedos de Bordeaux eram plantados com Tarney Coulant”, diz. Na época, essa variedade era a principal do Château d’Issan, por exemplo. “Sim, havia Cabernet Sauvignon, mas havia também Castet, Saint-Macaire, Carménère e Merlot – mas não na margem esquerda”, garante.

“Antes da filoxera, cada variedade tinha um tipo de solo. A Merlot, era plantada na argila, a Cabernet Sauvignon no cascalho, a Petit Verdot nas áreas úmidas. Se você colocar Petit Verdot não enxertada no cascalho, ela morre. Se colocar Cabernet Sauvignon em um local úmido, ela morre. Não havia Merlot antes da filoxera, antes dos enxertos, na margem esquerda. Na margem direita, sim, mas não é o mesmo solo”, revela Pasquet.

“Hoje eles colocam Merlot na margem esquerda, no cascalho, mas é uma loucura. Há um excesso de maturidade, obviamente... Se você quiser obter uma boa nota de um crítico, você tem que fazer vinhos que sejam gordos e doces. É por isso que plantaram Merlot no cascalho, para fazer vinhos gordurosos e doces. Eles venderam suas almas!”, declara.

Segundo o produtor, Antes da filoxera, 70% dos vinhedos de Bordeaux eram plantados com a casta Tarney Coulant

SEM MEDO DA FILOXERA

O fato de ter suas vinhas plantadas em pé-franco, sem enxerto, não causa nenhum desconforto em Pasquet. Segundo ele, os enxertos deveriam ser banidos, pelo menos na sua região. “Você não tem qualquer risco de filoxera, pois na margem esquerda você tem cascalho e areia por 20 cm, e você não tem filoxera se tiver esse tipo de solo”, garante. Então por que todos usam? Para ele, isso se deve à produtividade: “Em pé-franco você produz 20 hectolitros por hectare. Se enxertar, pode produzir 80”.

Ele assegura ainda que a história serve de base para suas atitudes e relata que, em 1904, o proprietário do Château Margaux afirmou que “havia perdido o sabor de seu vinho” desde que havia enxertado suas vinhas e, dessa forma, planejava tirá-las do enxerto. Em outro relato, ele aponta que, em 1936, o dono do Château Haut-Bailly disse que manter seu vinhedo sem enxertia foi a melhor coisa que já havia feito.

Por tudo isso, Pasquet obviamente não utiliza fertilizantes químicos e os vinhos são certificados como orgânicos pela Ecocert. Como as videiras são muito compactas, a terra é trabalhada por uma mula espanhola (o arado que ela puxa tem 150 anos). Além disso, as técnicas de vinificação imitam as do século XIX com longas macerações, mínima intervenção, fermentação em barrica e maturação prolongada antes do lançamento.

Outro detalhe curioso do Liber Pater é a rolha. Para Pasquet, a porosidade da cortiça varia de um ano para o outro e isso não reflete os seus requisitos de qualidade. Sendo assim, ele usa a tampa “Guala”, inventada pela indústria automotiva. Um tipo de tampa de rosca metálica que permite a micro- -oxigenação, assim como a cortiça.

PREMIER CRU?

Todo o trabalho é feito manualmente e, se a colheita não estiver à altura, Pasquet não faz nenhum vinho, como aconteceu nos anos 2008, 2012 e 2013. Há quem diga, porém, que isso é uma forma de justificar o preço cobrado pelos vinhos. Com tantas “excentricidades” e tanto sucesso, o enólogo não poderia ficar longe de algumas controvérsias e entreveros com a justiça.

Em 2016, ele foi processado e multado por supostamente fraudar o uso de subsídios da União Europeia nas ações de promoção de seu vinho em países pelo mundo. Na mesma época, seus vinhedos foram vandalizados e alguns hectares perdidos e, quase tão ruim quanto isso, o INAO o processou por não respeitar as regras da denominação de origem de Graves. Ele, porém, afirma que teve permissão do próprio órgão para plantar em densidade de 20 mil videiras por hectare em 2010. Recentemente, o INAO parece ter recuado e revisto sua posição sobre os métodos usados por Pasquet. “Isso é completamente louco. Temos as variedades de uvas autênticas, plantadas em seus próprios porta- -enxertos em Bordeaux, e somos proibidos de usar o nome de Graves. É inacreditável”, diz.

Atualmente, Liber Pater é o vinho mais caro de Bordeaux e, por isso (e para gerar ainda mais controvérsia), Pasquet está solicitando sua inclusão como Premier Cru Classé na Classificação de 1855. “Se eles não quiserem, vou levá-los ao tribunal. Eles começaram essa guerra, então eu terminarei”. Segundo ele, alguns Châteaux famosos já o procuraram para perguntar sobre as variedades antigas, que já estão incluindo em seus vinhedos (Palmer seria um deles). “Daqui a 40 anos, eles dirão que as variedades de uva originais não enxertadas produzem um vinho melhor. Levará 40 anos para explicar isso”, comenta, esperando que Bordeaux volte a ser o que era antes da filoxera.

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