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João e Francisca têm a mesma idade, com diferença de um mês. E se conhecem praticamente desde que nasceram. Os pais são amigos e ambos descendem de famílias tradicionalmente ligadas ao mundo do vinho. Primeiro, ao Vinho do Porto. Mas, nos últimos 20 anos, crescentemente, aos brancos e tintos da denominação Douro DOC, criada em 1986. É natural, portanto, que hoje trabalhem nas empresas de suas respectivas famílias.
Mais importante, contudo, é que eles representam a continuidade de um projeto original e muito bem sucedido que teve início em 2003, quando cinco dos mais tradicionais produtores do Douro (aí incluídas as famílias de seus pais) uniram-se com o objetivo de promover conjuntamente a própria região produtora, até então conhecida quase exclusivamente por seu famoso vinho forticado. O grupo foi batizado de “Douro Boys” para ressaltar seu caráter informal, presente também em suas atividades e na forma de divulgá- -las. Até hoje não tem estatuto formal nem entidade jurídica constituída. Só a marca é registrada.
João Roquette Álvares Ribeiro e Francisca Van Zeller são filhos, respectivamente, de João Ribeiro (Quinta do Vallado) e de Cristiano Van Zeller (Quinta Vale D. Maria), dois dos membros-fundadores dos Douro Boys. João também tem ligação por parte de mãe com os Roquette, da Quinta do Crasto, hoje dirigida por seus tios Tomás e Miguel. O grupo original se completa com os Olazabal, pai e lho, da Quinta do Vale Meão, e com Dirk Niepoort, que liderou a entrada de sua família, tradicionais negociantes de Vinho do Porto, no mercado de vinhos de mesa (não-forticados), com a compra das quintas de Nápoles e do Carril, no Douro, no final dos anos 1980.
Atualmente, João trabalha na área de marketing e vendas do Vallado e tem vindo muito ao Brasil, um dos maiores mercados para seus vinhos. Francisca enveredou pela enologia e ajuda o pai na produção dos vinhos da Quinta Vale D. Maria. Um deles, por sinal, leva seu nome e assinatura no rótulo: Vinha da Francisca. A vinha em questão foi plantada quando a homenageada tinha 18 anos.
A nova geração e as novidades
“Com a chegada da nossa geração, os Douro Boys são cada vez mais Douro Kids”, definiu o bem humorado João em uma recente visita que ADEGA fez a todas as quintas do grupo. A viagem mostrou que a chegada dessa nova geração não altera o espírito do grupo nem sua dinâmica. Muito menos significa a saída de cena dos fundadores. Eles estão ativos como sempre e, já participaram de eventos conjuntos em Toronto e em Macau. “Os Douro Boys vieram para ficar, inclusive com a chegada dessa nova geração”, assegura Cristiano Van Zeller. Individualmente, porém, cada produtor está mais preocupado com seu próprio trabalho.
Na Quinta do Vale Meão, por exemplo, uma das novidades é o possível lançamento de um tinto 100% Baga. Ao perceber a surpresa que provoca nos visitantes ao apresentar esse vinho, ainda não engarrafado, feito com a uva que é símbolo da Bairrada, Francisco “Xito” Olazabal, enólogo e um dos proprietários da quinta ao lado dos pais e da irmã, explica que a Baga é comum no Douro, onde não por acaso recebeu o nome de Tinta da Bairrada. E que se adaptou tão bem a algumas das parcelas de solo granítico do Meão, em sua maioria xistosos, que vai plantar mais Baga em vinhedos atualmente dedicados à casta Sousão. Mais comum na região, a Sousão não se adaptou bem ao terroir do Meão, mas, curiosamente, se dá muito bem na Quinta do Vallado, da qual Xito Olazabal também é enólogo. No Meão, a expectativa é aumentar a produção ainda pequena de Baga (hoje ocupa apenas 1,5 hectare), para lançar um vinho monovarietal, à semelhança do Monte Meão, à base de Touriga Nacional, que já produz há alguns anos.
Quinta Vale D. Maria vai substituir seus tanques de inox por tradicionais lagares. Outra aposta de Cristiano Van Zeller é vinificar cada parcela de vinhedo separadamente para preservar sua identidade
Já na Quinta Vale d. Maria, os planos em curso mostram um olho no futuro e outro no passado. O futuro é o projeto de uma nova e moderna adega subterrânea. Por sinal, ampliar as adegas existentes ou construir outras mais modernas tem sido um caminho comum a praticamente todas as quintas pertencentes aos Douro Boys, em razão do enorme crescimento de vendas que tiveram desde que o grupo foi formado. “Todos nós vendemos muito mais hoje do que há 10 anos”, conrma Francisco Spratley Ferreira, um dos donos da Quinta do Vallado, que inaugurou a sua nova adega em 2009, dobrando a capacidade de vinicação e envelhecimento de vinhos.
“Com a chegada da nossa geração, os Douro Boys são cada vez mais Douro Kids”, diz João Roquette Álvares Ribeiro
Enquanto toma fôlego para transformar em realidade o projeto da nova adega, a D. Maria empreende uma curiosa volta ao passado: vai substituir seus tanques de inox por tradicionais lagares. Van Zeller, dono da quinta que pertencia à família de sua mulher, Joana, há mais de 250 anos, está convencido da superioridade desses últimos e destaca três aspectos: 1) a diferença de temperatura no lagar é praticamente inexistente, o que torna o mosto mais homogêneo; 2) maior contato do líquido com as cascas e 3) oxigenação natural do mosto. Como em muitos produtores do Douro, na D. Maria a pisa a pé em lagares é usada em 100% das uvas destinadas ao Vinho do Porto e em boa parte das que serão usadas nos tintos de alta gama.
Borgonha
Outra aposta de Cristiano Van Zeller é vinicar cada parcela de vinhedo separadamente para preservar sua identidade. “É como na Borgonha”, diz ele, “e é isso que estou procurando fazer aqui”. Os vinhos que se originam dessas parcelas são engarrafados como “single vineyard”, a exemplo do Vinha da Francisca e do Vinha do Moinho.
Quinta de Nápoles, do inquieto Dirk Niepoort, inaugurou uma adega inteiramente nova em 2007
Este último é um topo de gama vendido exclusivamente em restaurantes selecionados (o do conhecido chef Martín Berasategui, na Espanha, é um deles). No Brasil, Cristiano ainda não escolheu possíveis candidatos, mas não é difícil imaginar que nomes como D.O.M. e Mani, em São Paulo, estejam na lista. O objetivo, segundo ele, é suprir a falta de presença de vinhos portugueses de alta gama em restaurantes de grande visibilidade. Obviamente, os vinhos a que se refere são produzidos em pequena escala, o que afeta o preço. Uma garrafa do seu Vinha do Rio safra 2013, por exemplo, do qual foram produzidas apenas 1.900 unidades, é vendida por cerca de 120 euros em Portugal. Mas quase toda a safra foi vendida para Macau, grande mercado para vinhos portugueses mais caros.
A chegada de uma nova geração não altera o espírito do grupo nem sua dinâmica. Muito menos significa a saída de cena dos fundadores
Van Zeller não é o único admirador do modelo (e dos vinhos) da Borgonha. Não por acaso, um dos brancos mais ambiciosos de Dirk Niepoort recebeu o nome de “Coche”, homenagem implícita ao celebrado Domaine Coche-Dury. A história de como esse vinho nasceu (veja box) revela um pouco da personalidade de seu autor. E foi no também famoso Domaine Armand Rousseau, produtor de grandes tintos da denominação Gevrey-Chambertin, que recentemente Dirk mandou o lho Marco, de 19 anos, fazer um estágio.
Como produtor, Dirk, que estudou economia e não enologia, é inquieto ou curioso demais para ser fiel a uma única paixão. Por isso, hoje faz vinhos em diferentes regiões de Portugal, sozinho ou em parceria com produtores locais que admira, casos do Dão e da Bairrada. Nesta última, inclusive, comprou uma propriedade onde hoje produz o tinto Poeirinho (antigo nome da Baga), uma releitura el às origens dos tradicionais vinhos bairradinos. Em relação a seu próprio trabalho, ele diz que o objetivo é fazer “vinhos mais frescos, mais leves e com menos madeira”, o que se nota em muitos exemplares de safras recentes provados no Douro.
Expansão
Na Quinta do Vale Meão, uma das novidades é o possível lançamento de um tinto 100% Baga
A Niepoort inaugurou uma adega inteiramente nova na Quinta de Nápoles em 2007 e integra o grupo dos maiores produtores, em volume, dos Douro Boys, junto com Vallado e Crasto. Francisco, do Vallado, informa que a produção da empresa dobrou nos últimos cinco anos, chegando a mais de 900 mil garrafas em 2014 (quase um terço desse total é vendido no Brasil). O crescimento coincide com a inauguração da nova adega, na mesma época em que foi comprada a Quinta do Orgal, com 40 hectares, no Douro Superior.
No Vallado, a prioridade é a classi cação e replantio, uma a uma, das vinhas velhas, que têm em média aproximadamente 100 anos. É um trabalho cirúrgico, à razão de 1% ao ano. Por enquanto, já foi possível identificar 33 variedades diferentes de uvas tintas e 10 de brancas. Outro processo em curso é a gradativa substituição da Tinta Roriz pela Sousão (um dos vinhos monovarietais do Vallado é 100% Sousão). Há também um aumento da aposta em vinhos brancos, que já respondem por 20% do total da produção, contra 70% de tintos e 10% de Portos – que todos os Douro Boys continuam a produzir.
Mas a aposta não é apenas nos vinhos. A Quinta do Vallado é um dos produtores que mais investiu em enoturismo em Portugal. Em 2012, inaugurou um novo e moderno hotel anexo à tradicional sede da quinta em Peso da Régua. E, em 2015, abriu as portas de um hotel-boutique (seis suítes) na Quinta do Orgal, chamado Casa do Rio. “O turismo ajuda a promover tanto o Douro como nossos vinhos”, justica Francisco.
Os Douro Boys estão sempre inovando, buscando estar na vanguarda da região mais tradicional do vinho em Portugal
Também na Quinta do Crasto está sendo concluído um meticuloso trabalho de mapeamento de seu vinhedo mais famoso, berço do icônico vinho Maria Teresa. No total, foi constatada a presença de 50 diferentes variedades nesse vinhedo e no da Vinha da Ponte, mas apenas 49 foram geneticamente identicadas. Uma delas permanece um mistério. A produção total no Crasto ultrapassou 1,2 milhão de garrafas em 2014, nada mal para quem engarrafou seu primeiro tinto de mesa em 1994.
Um dos projetos atuais da empresa é acrescentar Tawnies e Colheitas (que ela mantêm em estoque) à sua linha de Vinhos do Porto, hoje focada nos estilos Vintage e LBV, em linha com a importância do Porto na história da quinta. No passado, um de seus produtos mais famosos foi o Porto Constantino’s, que tem o nome de Constantino de Almeida, bisavô materno dos atuais gestores do Crasto. Foi ele quem iniciou uma curiosa ligação da quinta com o Brasil, pois passou parte da infância e da adolescência no Rio de Janeiro. Foi também no Brasil que sua neta Leonor, o marido, Jorge Roquette, e seus lhos (Rita, Miguel e Tomás) viveram alguns anos quando a família se viu forçada a deixar Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974. E foi em São Paulo que nasceu, em 2015, o trineto de Constantino, Mateus. Ele é filho de Miguel Roquette e da jornalista brasileira (apresentadora da TV Globo) Flávia Freire. Mateus será, quem sabe, um sucessor de seu primo João na próxima geração de “Douro Kids”.
VINHOS ESPECIAIS
Os Douro Boys gostam de receber e são anfitriões generosos. Além de mostrar safras especiais de seus próprios vinhos, fazem questão de oferecer aos visitantes vinhos de outros produtores, representativos da rica tradição vinícola portuguesa. ADEGA provou alguns exemplares em recente viagem ao Douro.
BARCA VELHA 1966
Um dos ícones de Portugal. Primeiro grande tinto não-fortificado do Douro. No início, era produzido com uvas da própria Quinta do Vale Meão (hoje a principal fonte é a Quinta da Leda, que, como a marca, pertence à Sogrape). Como esperado, perdeu um pouco da cor e apresenta halo cor de ferrugem. Aromas terciários (fruta seca, ervas medicinais e a nota agreste típica do Douro). Na boca, conserva a acidez, um pouco de fruta e taninos suficientes para mostrar que ainda está vivo. Pode ser bebido (sozinho) com muito prazer por quem aprecia vinhos mais evoluídos.
“PROIBIDO” RIESLING 2003 (NIEPOORT)
Produzido no Douro por Dirk Niepoort, que não esconde a paixão pelos vinhos do Mosel. Nunca foi comercializado (na época provavelmente nem poderia), daí o nome. Mais evoluído nos aromas (cogumelos, mineral, mel) do que na boca, é um vinho tipo Auslese, com bom equilíbrio entre acidez e açúcar (100 gramas). E apenas 6% de álcool. Hoje a Niepoort produz o que Dirk chama de um Riesling dócil, que recebeu o nome “Au, au”, em homenagem ao melhor amigo do homem.
ALIANÇA BAIRRADA BRANCO 1953
Quase âmbar e quase só frutas secas no nariz e na boca. Oxidado. Boa acidez. Para tomar puro como um Jerez (ou um velho Tondonia branco).
BARROCÃO 1970 VINHO TINTO VELHO
O rótulo não indica, mas é um vinho da Bairrada. O halo cor de tijolo e as notas de frutos secos e ervas entregam sua idade, que o surpreendente frescor, principalmente na boca, desmente. Sedoso e elegante, ainda conserva taninos que não secam a boca. Uma comprovação de que mesmo sem a tecnologia atual, vinhos tradicionais portugueses podem evoluir muito bem.
QUINTA DO CRASTO RESERVA TINTO 1994
Primeiro vinho tinto lançado pelo Crasto e uma das últimas magnuns disponíveis na adega da quinta. Já perdeu muita cor e tem grande halo atijolado. Além de notas medicinais e de ervas, apresenta aromas nitidamente animais e de couro, o que faz supor a presença de brettanomyces, levedura selvagem que aporta esse tipo de aroma. Na boca, ainda conserva um traço de fruta passada, quase seca, e boa acidez. O álcool (13%) se sobressai um pouco. Um atestado de competência ao enólogo David Baverstock, australiano de nascimento que se nacionalizou português, que assina o rótulo (hoje, Baverstock trabalha no Esporão, pertencente a outro ramo da família Roquette).
QUINTA DO VALLADO PORTO TAWNY 70 ANOS
De cor âmbar bem escuro, com reflexos esverdeados também escuros, típicos da idade. Quase viscoso na boca. A palheta de aromas que se desprendem da taça desafia a objetividade: figos secos, ameixas pretas, fumo de rolo, iodo e mel envelhecido. Para nós, brasileiros, pura rapadura. Na boca, impressiona pela ótima acidez e obviamente é doce, sem ser enjoativo, com um final de boca muito longo. Só está a venda na própria quinta.