Tudo sobre Vinhos
A vindima 1947 é considerada uma safra milagrosa
A primeira vez que um vinho foi vendido sob o nome Cheval Blanc já estávamos em meados do século XIX, mais precisamente em 1852. Antes, ele era conhecido como vinho de Figeac, pois suas terras se misturavam à do Château vizinho, o Figeac, situado a menos de um quilômetro de distância em Saint-Émilion.
Apenas trinta anos depois, contudo, o “Cavalo Branco” já era considerado um dos grandes vinhos de Bordeaux, comparado aos cinco Premier Grand Crus da famosa classificação de 1855. No entanto, a história do vinhedo e do nome é anterior. Documentos datando de 1546 já apontavam que havia vinhas plantadas no local.
E um contrato de 1587 afirma que um viticultor “iria morar lá quando o sol se pusesse para ficar de olho nas vinhas”. Um século depois, a fazenda “Au Cheval Blanc” seria vendida para Bertrand de Gombaud, prefeito de Libourne, pela exorbitante quantia de 1,4 mil francos. Acredita-se ainda que dois viticultores viveram em Cheval Blanc durante a Revolução Francesa para guardar a propriedade. Mas somente em 1832 o Château tomou forma.
Na época, Jean-Jacques Ducasse, presidente da Câmara de Comércio de Libourne, comprou as partes centrais do vinhedo e diversas outras parcelas que pertenciam ao Château Figeac, e que formam hoje os 39 hectares da propriedade, permanecendo praticamente inalterados desde então.
A grande virada na história do vinho local, todavia, viria com o casamento de Henriette, filha de Ducasse, com Jean Laussac-Fourcaud, um mercador de vinho de Libourne. Eles herdaram Cheval Blanc e Laussac-Fourcaud iniciou uma grande reformulação, que definiria o futuro do Château. Ao replantar boa parte dos vinhedos em 1860, ele decidiu por Merlot (uma das estrelas da Margem Direita de Bordeaux e destaque na região vizinha de Pomerol) e Cabernet Franc, cada uma com 50%, uma proporção pouco usual até então.
O replantio terminou em 1871 e, junto a isso, ele ainda criou um sistema de drenagem do vinhedo – sendo um dos primeiros a entender a importância do estresse hídrico para a produção de grandes vinhos. A ideia de Laussac-Fourcaud deu certo e, nos anos seguintes, ele colecionou prêmios importantes, a começar pela medalha de bronze na Exposição Universal de 1862, em Londres.
Em 1860, Jean LaussacFourcaud decidiu replantar boa parte dos vinhedos e optou por dar prioridade à Merlot e à Cabernet Franc
Em 1878, na Exposição Universal de Paris, o vinho recebeu nova honraria, dessa vez a medalha de ouro. Essas duas medalhas até hoje estão representadas no rótulo do vinho. Em 1886, ele ganhou nova meda lha de ouro, na Exposição Universal da Antuérpia. Na ocasião, já era considerado do mesmo gabarito que os Premier Grand Cru da classificação de 1855, alcançando preços tão elevados quanto.
O arquiteto francês Christian de Portzamparc projetou a nova vinícola, que foi inaugurada em 2011
O melhor vinho do século XX
Com a morte de Jean Laussac-Fourcaud em 1888, a propriedade passou para seu filho, Albert, que depois a passou para seus filhos, Jacques e Joseph. Em 1954, na primeira classificação dos vinhos de Saint-Émilion, Cheval Blanc recebeu o posto mais alto, de Premier Grand Cru Classé “A”, juntamente com o Château Ausone (atualmente, Angélus e Pavie também estão na mesma categoria). Já reconhecido mundialmente, o Château se tornaria verdadeiramente mítico com a safra de 1947.
Sob o comando do enólogo Gaston Vaissière, foi produzido o vinho que seria considerado por muitos críticos como o melhor do século XX. A vindima 1947 foi anormalmente quente e seca, com uvas muito concentradas. É considerada uma safra milagrosa. O tempo fez com que houvesse um percentual de álcool elevado, 14,4% (quando o comum era até 12% na época), e também um pouco de açúcar residual (3 gramas por litro).
O vinhedo é dividido em 45 parcelas tratadas como Single Vineyards. As 237.288 plantas do local são mapeadas e identificadas individualmente
Por isso, muitos avaliadores chegaram a descrevê-lo como tendo um estilo de Vinho do Porto. Anotações do próprio Château dão conta de que produzir esse vinho foi quase um acidente. Jancis Robinson, Michael Broadbent, Michel Bettane e Robert Parker, por exemplo, chegaram a classificá-lo como o melhor vinho de todos os tempos, caracterizando-o da seguinte forma: buquê de frutas cristalizadas, marmelada, mocha, especiarias, pimenta, chocolate e café; doçura incrível, tanino macio e suave, sem qualquer secura.
Já consagrado pela crítica, uma mudança vital ocorreria na administração do Château em 1998, quando Bernard Arnault, diretor do grupo LVMH, e o Barão Albert Frère adquiriram a propriedade. No mesmo ano, Pierre Lurton, do Château d’Yquem, assumiu a direção de Cheval Blanc. “É um vinho atemporal e incomum, o único com tanto Cabernet Franc”, aponta Lurton.
Logo em seguida, as estruturas da propriedade foram totalmente remodeladas. Em junho de 2011, um novo prédio, projetado pelo premiado arquiteto francês Christian de Portzamparc, nasceu contíguo ao antigo Château. Um desenho futurista ao lado de uma paisagem histórica considerada patrimônio mundial pela UNESCO.
Ao todo, são 52 cubas de concreto, construídas na Itália, com nove tamanhos diferentes, feitas para receber as uvas de parcelas específicas do vinhedo
Duas ondas
Quem se aproxima da propriedade logo vê duas enormes ondas de concreto branco sobressaindo-se. Sobre essas colinas artificiais, um jardim. Com 6 mil metros quadrados, a estrutura aproveita a luz natural em sua sala com 52 cubas de concreto, construídas na Itália, com nove tamanhos diferentes, de 20 a 110 hectolitros, feitas para receber as uvas de parcelas específicas do vinhedo.
Cada cuba foi feita com formato pensado para a parcela que recebe. No subsolo, uma sala de barricas com temperatura constante de 14oC recebe o vinho depois de fermentado. Entre 300 e 450 barricas são usadas por safra. Elas são compradas de seis ou sete fornecedores diferentes. E essa política se dá, pois os produtores não querem que um tipo específico de carvalho ou de tosta influencie no vinho.
Todo ano, são feitas degustações com os fornecedores para encontrar uma melhor uniformidade e alcançar uma precisão aromática. O blend é feito somente depois de três meses, quando enfim os vinhos das diferentes parcelas são misturados. Somente os melhores são selecionados entre as possíveis 45 parcelas (de 15 a 35 parcelas são escolhidas dependendo da safra). Por conta disso, a proporção de Merlot e Cabernet Franc nunca é a mesma de ano para ano. Seleção feita, o blend descansa rapidamente em uma cuba de aço de 220 hectolitros e depois é colocado nas barricas novamente para envelhecer.
39 hectares e 45 parcelas
Os 39 hectares de vinhas do Château Cheval Blanc são divididos em 45 parcelas que são tratadas como Single Vineyards, pois possuem variedades de uva, tipos de solo, espécies de porta-enxertos e vinhas de idades diferentes. Muitos acreditam que o grande diferencial da propriedade, além do uso mais intenso de Cabernet Franc, está no seu terroir.
Por ser localizado em um plateau entre Pomerol e Saint-Émilion, seu solo possui características dos dois lugares, no entanto, diferentemente da maioria das propriedades de Saint-Émilion, não possui calcário, mas sim porções equivalentes de cascalho e argila. Três tipos de solos se encontram lá em uma combinação pouco usual: o primeiro de textura fina com argila, o segundo mais grosseiramente texturizado com cascalho e o terceiro de cascalho grande com areia.
Diante disso, a proporção das variedades é 49% Cabernet Franc, 47% Merlot, e 4% Cabernet Sauvignon. Os vinhos resultantes dos solos com mais argila são potentes com taninos aveludados, enquanto os do solo de cascalho são mais aromáticos e elegantes. A combinação entre eles é que faz o Cheval Blanc.
Para se ter ideia do quão específicos são os enólogos da propriedade, eles mantêm as 237.288 plantas do local mapeadas e identificadas individualmente. A média de idade das vinhas é de 42 anos, com as mais velhas datando de 1920. Apenas um hectare é replantado a cada três anos, somente com a seleção massal feita com as próprias vinhas, em um programa que começou em 1996.
Trabalho minucioso Além de totalmente mapeados, o solo e as vinhas de Cheval Blanc são trabalhados de forma completamente detalhista. Duas vezes por ano, por exemplo, o solo é arado, enterrado e desenterrado alternadamente. Isso ajuda no enraizamento e a proteger a planta no inverno. A poda de cada parcela é feita, ano após ano, pelo mesmo empregado, que passa a conhecer melhor as vinhas, que são orientadas de norte a sul.
No verão, a poda verde é severa deixa apenas de dois a 12 cachos por planta, dependendo do vigor. A colheita manual é feita parcela por parcela por cerca de 50 pessoas e leva aproximadamente 10 dias de trabalho divididos ao longo de um mês, de acordo com o tempo de maturação de cada parcela. As uvas passam uma noite numa câmara fria e cada parcela é processada separadamente.
Elas passam por três mesas de seleção e menos do que 5% das uvas são deixadas inteiras, e menos de 5% são esmagadas. A produção anual é de cerca de 120 mil garrafas do vinho principal e 30 mil do segundo, o Le Petit Cheval, criado em 1988. Apesar de ter pequenas partes de Cabernet Sauvignon, a variedade nunca é usada no Cheval Blanc. O vinho costuma ser aclamado por seu perfume intenso e sua textura, além de uma incrível elegância que não o impede de envelhecer bem. Mais do que isso, está sempre entre os melhores.
Parker mordido
No começo dos anos 1980, Robert Parker visitou o Château Cheval Blanc para uma prova en primeur da safra 1981, que não foi muito boa em Bordeaux em geral. Depois de degustar o vinho, escreveu que ele era decepcionante, medíocre. Indignado, Jacques Hébrard, gerente da propriedade, ligou reclamando para o crítico norte-americano que decidiu voltar a Cheval Blanc e provar o vinho novamente. Ao chegar lá, Parker foi recebido pelo cão de estimação de Hébrard, um pequeno mas agressivo Schnauzer que lhe mordeu a perna enquanto o dono apenas observou indiferente.
Depois que conseguiu se livrar do cachorro, o crítico seguiu até o escritório do gerente e, ao ver a perna sangrando, pediu algo para estancar. Hébrard lhe deu então uma cópia da fatídica resenha de seu vinho escrita na The Wine Advocate. Depois de uma discussão, Parker degustou a safra 1981 de novo e teve de admitir que havia avaliado mal o vinho.